3 de julho de 2014

Abortos: A morte quando se espera a vida...


por Cariny Cielo

Ela chegou até mim e me deu uma carta... antes de terminar de ler, eu já chorava assim como choram mesmo, todas as mulheres, ao encontro da dor da outra. No mesmo dia, à noite, recebo uma mensagem no celular: "terceiro, amiga, perdi o terceiro...".
Duas amigas vivendo luto e dor e eu chorei o choro que choramos todas por receber a morte, quando se espera a vida...

Lembrei-me imediatamente de uma música de Rosa Zaragoza, chamada 'La muerte cuando esperas vida' que foi inspirada da carta de uma mulher que viveu uma experiência inigualável de fé ao deparar-se com a morte. A música e, em seguida, a carta (em tradução livre) estão no fim deste texto...

Sinto que existe uma banalização em nossa sociedade relacionada a abortos espontâneos no primeiro trimestre. Os médicos dizem às mulheres ser normal, e as mulheres se sentem na obrigação de não sofrer, de não viver o luto. Muitos dizem 'logo, logo você engravida novamente', em total desrespeito àquele momento e ao sentimento de quem perdeu. E a mulher que perdeu não quer pensar em desejar outro! Não, naquele momento... naquele momento, ela queria aquele filho!

Jamais permita que banalizem a tua dor, que te façam engolir um luto. Não toque a vida, desmerecendo a vivência, a julgando ordinária, comum... só você conhece a dor de ter perdido um filho ainda no ventre. Cada qual na sua fé, na sua cultura, permita-se viver o processo com respeito por si mesma... escreva uma carta, uma música, pinte uma tela, plante uma árvore, ofereça uma oração, um serviço... de alguma maneira, simples ou cerimoniosa, pesada ou leve, contando que seja da sua essência, carregue o seu significado...

Neste mergulho da dor da outra, findei conhecendo um blog chamado La Vida Intrauterina de Lídia Estany Estany que vale a leitura e traz muito do que já estudei em Ciência do Início da Vida, explicando que nossas experiências iniciais durante a concepção, a vida pré-natal, nascimento e período neonatal fazem parte do nosso ser e marcam profundamente quem seremos. Nele há a indicação de um livro chamado "Abrazar la muerte cuando se espera la vida", escrito por María Jesús Blázquez que conta que pariu quatro filhos, dois vivos e dois natimortos e que esta experiência a marcou tanto que, desde então, tem vivido para o tema nascimento e maternidade. O livro pode ser baixado aqui.





Achei também:
Grupo Casulo: Associação Brasileira de Apoio ao Luto
Aborto espontâneo, quebrando tabus. Texto do blog Desabafo de mãe.
O drama do aborto espontâneo que indica o livro Maternidade Interrompida: o drama da perda gestacional
Depoimento no Vila Mamífera: Uma breve gestação



E já que este é um ambiente de relatos... vamos às vivências!



Esta é a carta que minha amiga dividiu comigo:

Meu Filho,

Lamento se, de alguma forma, contribui para que você fosse embora tão cedo... com apenas 8 semanas de vida. Eu te queria muito e só percebi efetivamente o quanto, quando te perdi.
Acredito na perfeição do Universo e sinto, de verdade, que não era para você vir, e ser meu filho agora.
Espero que você esteja bem, no plano espiritual que estiver, e que se for o seu desejo possa reencarnar numa família que te ame.
Tivemos, mesmo que por pouco tempo, a relação mais profunda que o ser humano pode ter: o vínculo de mãe e filho.
Sinto muito que tenha sido tão breve, mas quando eu conversava contigo em minha barriga, eu já procurava demonstrar todo o meu amor, fosse com palavras ou cuidados de saúde e alimentação.
Te amo e te liberto! Peço que me libertes também.
Com amor,

Tua mãe.




A carta abaixo é parte integrante do CD 'Nascer, Renascer' da artista Rosa Zaragoza, que muito gentilmente me permitiu traduzir e tornar pública aqui:





Eu sabia que o parto iria nos levar ao nascimento da morte. Receberia meus dois filhos para perdê-los em um curto espaço de tempo, talvez ficariam apenas alguns minutos conosco. Depois de tantos meses de planos, mergulhando dentro de mim, banhando-me em minha ilusão... só alguns minutos! 

No começo eu estava tão assustada que não conseguia ver nada. Foram vinte horas de contrações secas. Mas, ao final, a luz chegou aos meus olhos. A comunicação com eles fluiu e me permiti escutar o que queriam me dizer: que as suas vidas haveriam de ser esta e nenhuma outra. 
Que aquilo que me parecia uma existência curta, mesquinha, pobre e desafortunada, na realidade, era tão longa quanto eterna, era generosa e era iluminada.

E eu entendi que amor significa aceitar...
Que me desapegar, lançar-me ao vazio, seria a minha salvação.

Entregando-me assim, finalmente, as portas do meu corpo puderam se abrir. E o vulcão pôs-se em erupção. Parecia que me quebrava e me partia em dois pedaços.

Mas não, não era nada disso! A carne viva, sem falsas ajudas, me deu a vida e a morte.
E como que guiada por mãos divinas, eu não duvidava mais de nada.

Meu estado era, enfim, sereno. Não havia nada, além de pulsão instintiva. Não faltava falar nada, nem pensar, a mente se perdeu. O tempo também... o que pareciam instantes foram horas e o que pareciam horas foram instantes.

Os gritos eram como uivos, desde muito, contidos. A dor foi entregue e eu, com eles, nascia.
Deixava de ser filha, unicamente filha, para ser mãe, para ser mulher. Mulher inteira. Finalmente, a mulher que me tornei. 

E a voz... ah, a voz! Eu a sentia como se fosse de uma besta, feroz e muito potente. E me dei conta de que eu nunca havia ouvido, verdadeiramente, a minha própria voz. Minha própria essência. Consciência plena, instinto absoluto.

Nossa experiência se converteu em um Ato Sagrado. Ritual de iniciação. Renascimento, depois de trinta anos que eu havia nascido. E as duas crianças ali doando-se, em oferenda...

Nas mãos de seu pai, lhes dissemos adeus, com o silêncio nos lábios e os olhos cheios do mesmo amor que eles nos estavam presenteando. O amor que nos tem mantido fortes e firmes, seguros e unidos até o final... e até aqui.

Durante as semanas seguintes estive chorando tanto que meus olhos secaram e as pálpebras enrugaram, parecendo que nunca mais seriam como as pálpebras de uma mulher jovem.
Eu chorei de manhã, à noite e em todas as horas. Chorei andando pelo pasto, andando pelas ruas, chorei junto à praia, estando sozinha ou acompanhada, comendo e até em sonho, eu chorava. 

Mas foi com a cabeça erguida. Eu me senti tão digna que honrava meus filhos, minha maternidade, o meu homem e minha vida. Honrava a vida que eu amo, que me representa e que tem me mostrado quem sou. Sentia uma gratidão imensa.

Desde então, eu sei quem eu sou e a força que carrego em mim. Desde então, minha voz fala por mim e desde o mais profundo de mim. 

Obrigada, Marcel, obrigada Alber, por nascerem e fazerem nascer.
Eu, para merecer este presente, farei com que nada disso morra.

Anna, novembro de 2004





Música do CD 'Nascer, 'Renascer'

La muerte cuando esperas vida 
(para ouvir, clique aqui)


Te caes, mi ángel. Vacía queda mi alma.
La vida que esperé desalentada.
Te vas tan pronto, hay leche para ti
y todo mi cariño te aguardaba.
Extiendo un manto de rosas y jazmines,
te arropo en tu viaje por las nubes;
te doy mis besos, te envío mis caricias
en este viento tibio de la tarde.

Siempre estará tu recuerdo.
No olvidaremos tu nombre.
Aquí quedamos los tuyos
con los ojos bien abiertos
y la conciencia más fina
para escuchar tu silencio
y reconocer qué nos quieres decir.

Te doy las gracias por este corto tiempo
tan mágico llevándote conmigo,
por tanta luz como has dejado en mi.
Yo sé que continuas tu camino
Extiendo un manto…

Siempre estará tu recuerdo.
No olvidaremos tu nombre.
Aquí quedamos los tuyos
con los ojos bien abiertos
y la conciencia más fina
para escuchar tu silencio

y reconocer qué nos quieres decir:
Quizá, que amémos la vida como es,
con todo el entusiasmo y la alegría.

Letra: Rosa Zaragoza Música: Mordekhai Zeira





Em respeito... 



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