24 de julho de 2011

"Doulas: por que e para quê?"


por Cariny Cielo

O nascimento natural não é um tema recente, a propósito, décadas atrás, o comum era a gestante recorrer ao hospital apenas quando apresentava uma patologia, seja durante a gravidez, seja durante o parto. Com a tecnologia e os avanços da obstetrícia, o parto deixou de ser um evento fisiológico para ser um evento médico. Como foram inúmeros os prejuízos advindos do excesso de intervenções, iniciou-se um movimento contrário à medicalização do parto e de retorno à fisiologia do nascimento.

Podemos citar aqui Janete Balaskas, Michel Odent, Frederick Leboyer, entre outros que, dentro da área médica, deram início a uma forma de enxergar o evento de maneira mais natural e respeitosa. Trata-se, portanto, de uma questão de direitos humanos: do humano que está a parir, e do humano que está a nascer. Com o avanço desta consciência, avançaram também as demandas por este tipo de atendimento diferenciado e, assim, surgiram as profissões de doulas e educadoras perinatais. Mas, essa ‘demanda’ não é tão simples assim de ser explicada!

1. A assunção dos homens no cenário do parto

Porque, afinal, precisou surgir uma profissão, a de doula, para exercer o papel de suporte precipuamente emocional da mulher na hora do parto? Seria capricho, seria modismo? As mulheres não conseguem mais parir sem doula? A questão não é tão básica assim.

Michel Odent nos lembra que passamos[1], diretamente, de uma geração que não reconhecia nem privilegiava a relação mãe/recém-nascido, bem como todos os mecanismos fisiológicos de um parto, para uma geração que impingiu os homens na sala de parto.

A questão da participação dos homens no trabalho de parto, e a sua entrada no cenário de parto, introduzida em larga escala no início dos anos 70, é muito complexa, está longe de ser consensual, e tem diversos efeitos a longo prazo, tanto para a relação do casal, como para a visão que o mundo tem do parto.

A presença do homem no parto é uma adaptação decorrente da industrialização do parto e da medicalização da sua assistência: a concentração dos partos no hospital é consentânea com a presença dos homens na sala de partos. Ao transferir o parto para o hospital, local hostil à grávida que se sente sem referências de proximidade, a presença do companheiro foi pensada como benéfica para atenuar o constrangimento de estar num sítio estranho com pessoas estranhas. Foram também as mulheres a exigir esse direito de ter alguém junto com elas num parto hospitalar.

É biológico que as mulheres busquem algo ‘conhecido’ para se apoiar no momento de cisão que é o do parto. A qualidade do vínculo paterno fez com que o pai venha sido escolhido para esse acompanhamento. Mas seria o pai a figura ideal para apoiar emocionalmente a gestante durante o trabalho de parto? Ele supriria o papel da doula? Mais questões... mais complexitude.


2. Doulas existem para quê?

Adriana Tanese Nogueira destaca que ‘temos doula pra tampar uma falha monstruosa’. E a falha monstruosa é a de conexão com o feminino, de conexão entre as mulheres. A falha está na ausência de união entre as mulheres, de proximidade, de cumplicidade, de trocas. Antes, não se tinha doula, como profissão, mas tinham-se mães, tias, primas, irmãs, vizinhas, mulheres sábias, enfim.

O patriarcado transformou as mulheres em inimigas, incitando a competição. E aqui a cura passa pela redenção do Sagrado Feminino[2], “que diz respeito tanto à mulher quanto ao homem. Ao esperar respostas e soluções vindas do Céu, esquecemos de olhar para baixo e ao redor, ignorando as necessidades da nossa Mãe Terra e de todos os nossos irmãos de criação. Para que os valores femininos possam ser compreendidos e vividos, são necessárias profundas mudanças em todas as áreas: social, política, cultural, econômica, familiar e espiritual. Uma nova consciência do Sagrado Feminino surgirá tão somente quando for resgatada a conexão espiritual com a Mãe Terra, percebida e honrada a Teia Cósmica à qual todos nós pertencemos e assumida a responsabilidade de zelar pelo seu equilíbrio e preservação. O reconhecimento do Sagrado Feminino deve ser uma busca de todos, porém cabe às mulheres uma responsabilidade maior, devido à sua ancestral e profunda conexão com os arquétipos, atributos, faces, ciclos e energias da Grande Mãe.”

A mulher que assiste uma parturiente é de existência muito antiga e há registros antropológicos históricos de que as mulheres sempre contaram com o apoio de outras mulheres quando no momento de dar à luz. Esta dinâmica também surgiu por uma alteração na própria sociedade, como já dito, antes agregada em famílias numerosas. Famílias hoje, gregárias, com núcleos cada vez menores, restritos a espaços reduzidos e a um cotidiano sem muito vínculo humano.

A doula vem para corrigir um erro do sistema. Mas não pode ser só isso. Todos têm que se corrigir: médicos, enfermeiras, administração hospitalar, etc. Todos têm que absorver um pouco do que a doula traz para se tornarem mais humanos[3].


3. A doula como instrumento

Como tudo é passível de má interpretação e má gestão, muitas mulheres enxergam a doula como garantia absoluta do sucesso do parto, destruindo o essencial requisito para tal, qual seja: o empoderamento feminino. Ora, quem entrega as rédeas, as responsabilidades, o difícil, a base emocional a outrem, está se desqualificando.

O outro viés, igualmente perigoso e que vem prejudicando a visão da sociedade acerca da profissão doula, é conferir à doula atribuições que são específicas da equipe médica: conferir pressão arterial, fazer exame de toque, monitorar os batimentos cardíacos do bebê... enfim, são atividades privativas dos profissionais da área médica, mas que muitas gestantes querem que sejam assumidas pelas doulas – e muitas vezes são – como intuito de, por exemplo, depois, divulgar e dar publicidade de um parto desassistido, como se o nascimento fosse um show com as estrelas puérpera e doula. Prejudica a essência da missão ‘doula’ quando as mulheres passam a desejá-las como deseja o enxoval do bebê.

A doula é, portanto, em essência, um instrumento para o empoderamento feminino. Seria esta a razão, então, da figura da doula como profissional da área de humanas que prestará serviços de apoio emocional e físico à gestante e parturiente. Sua atuação pode se dá de várias maneiras. Talvez, exatamente por isto, a questão da ética e da responsabilidade no trato da questão seja tão delicada. A tênue linha que separa o profissional do amadorismo deve ser constantemente checada, afinal, não estamos falando de uma ajuda ‘amiga’, embora a doula seja lato sensu a ‘melhor amiga da parturiente’; estamos falando de atuação profissional, com limites muito bem definidos, dentro da área da saúde e dentro da área de humanas.

A doula não é enfermeira, não é psicóloga, não é parteira, mas pode e deve indicar profissionais adequados para cada demanda da gestante, inclusive, ajuda profissional psicológica se verificar que há esta real necessidade.

Com ferramentas cada vez mais avançadas de pesquisa em internet, redes sociais etc, é comum que muitas pessoas se auto-mediquem, por exemplo. Em uma pesquisa rápida, facilmente vemos inúmeros contatos de gestantes via internet trocando receitas de medicamentos, tratamentos, enfim. Trata-se de um costume que deve ser desencorajado pelas doulas e educadoras, pois nada jamais substituirá o acompanhamento de um profissional da área. O que pode ser feito é ajudar esta mulher a encontrar o melhor acesso à informação de qualidade.


4. Doulas e o reconhecimento da profissão

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e Ministério da Saúde no Brasil reconhecem as vantagens da presença da doula na hora do parto e em 2013 o Ministério do Trabalho e Emprego Brasileiro cadastrou esta ocupação na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO n. 3221-35) .

A doula serve, na atualidade, para orientar e apoiar a gestante no sentido de fazer suas escolhas de forma esclarecida, após receber todo tipo de informação, à exaustão, para então conseguir de forma empoderada, dizer exatamente o que quer e como quer para o hospital, para a equipe médica. A doulagem tem, assim, o condão de, no mínimo, apontar a esta mulher todas as transformações pelas quais ela está passando e passará com o parto e o nascimento do filho. Ainda que estas informações não promovam mudanças significativas nesta ‘cliente’, ao menos restou a garantia e a segurança de que esta teve acesso a toda a informação e, democraticamente, com liberdade, escolheu seu caminho. Isto é amadurecimento social e individual.

Num mundo ideal, todas as mulheres que desejassem, independentemente de poderem ou não pagar, deveriam ter acesso à doula, e à educação perinatal. Isto reduziria, inclusive, gastos públicos na área da saúde com o incentivo à gestação consciente e saudável, ao parto natural e ao aleitamento materno. Trata-se de uma visão preventiva sobre a gestação, parto e puerpério e não intervencionista, como atualmente vemos nossa saúde pública.

A doula exerce um papel decisivo na esfera humana da relação gestante-equipe médica, já que não pode realizar nenhum procedimento nesta área. Seu papel é mais sutil, no entanto, muito impactante. Ela nutre a gestante de informações, de confiança e segurança para que esta discuta suas observações com os seus cuidadores.


5. A doula que não pariu

Parir é uma parte importante do crescimento/evolução da mulher, enquanto fêmea. Mas será que uma doula que já passou pela experiência do parto é melhor do que uma que nunca pariu?

O ser humano tem a especial capacidade de se colocar no lugar do outro e, neste aspecto, restou claro que uma doula, pelos simples fato de ser mulher, já pode ‘se colocar no lugar de’ e agir positivamente no intuito de atender as necessidades deste julgamento, desta análise, e mais ainda, deste sentir.

O trabalho de empoderamento e de sensibilidade é provável que tenha que ser maior (já que falta esta importante vivência ‘na carne’), mas o chamado e a vontade de doular pode ser algo tão do íntimo e tão forte que vencem os obstáculos da falta de experiência pessoal.

Por outro diapasão, fica claro que o inverso, ou seja, quando chegar – se chegar – o momento desta doula parir ela trará bagagens infinitas a sua atuação e poderá enriquecer seu trabalho com percepções infinitas, que sequer se pode cogitar.


6. Doulas, até quando?

A questão que surge é a de que, com o avanço da consciência e o empoderamento feminino, a figura da doula deixe de existir, mormente como profissão. Seria então, como dito acima, uma profissão surgida de necessidade da atual sociedade. Num mundo ideal, as mulheres já são, por si só parceiras, baluartes umas das outras e, no momento do parto, é quando isso será mais verificado e constatado.

Concluiu-se que, no dizeres de Adriana Tanese Nogueira, “idealmente, um dia a figura da doula morre, sim. Como a da psicoterapeuta! O meu trabalho existe por conta do abismo de ignorância a respeito da psique, de como funciona, de como entendê-la, da falta de educação psicológica, sentimental, emocional e espiritual. Mas falta muito ainda, temos trabalho para algumas gerações.”


7. A doulagem e a auto-análise

O livro Guia da Doula[4] fala dos transtornos que uma doula causou num parto e que ao chegar outra, o tanto que as coisas 'andaram'. Sabe-se de situações em que doulas bateram boca com a equipe médica, julgaram a família da gestante, julgaram a própria gestante, usaram o trabalho de parto como palco para exibicionismos, principalmente nas redes sociais.

E é muito complicado falar que para ser doula, você precisa fazer terapia, tal qual ocorre com os psicólogos, por exemplo. Pois, a doulagem hoje envolve muito brio, muito orgulho, muita prepotência. Geralmente, como são mulheres que agregam muitos outros conhecimentos (yoga, acupuntura, reiki, psicologia, etc) costumam acreditar que estão prontas, que não precisam de ajuda. No entanto, as doulas verdadeiramente comprometidas com a fidelidade e qualidade de seus trabalhos estão em constante auto-análise.

Percebe-se a profissão, antes mesmo de ser reconhecida, sofre alguns preconceitos, com doulas sendo chamadas de debochadas, xiitas, loucas, irresponsáveis etc. É terrível pra profissão, é terrível pro movimento. Há que se cuidar para não perder a chama do ativismo (falaremos depois) – necessário e vital pro movimento – e preservar-se para manter a beleza da atuação.

De outro turno, toda doula deve estar preparada para decepções. Não criar expectativas é um desafio e não projetar na outra o próprio ideal de parto. Onde há decepção, há julgamento.

Acho que esse deve ser, sem dúvida, um desafio pra profissão. Acompanhar uma gestante durante o 7o, 8o e 9o mês e com 40 semanas o médico a convencer de alguma emergência – reconhecidamente inexistente - e marcarem uma cirurgia. Surgem os questionamentos ‘onde erramos’, ‘onde falhamos, sendo que, em essência, não é cabível este tipo de sentimento. Trata-se do exercício do desapego. É a entrega absoluta pelo bem da gestante, sem apego.

A inteligência emocional[5] vai entrar em cena, como bem aponta Adriana Tanese Nogueira, “mostrando-se como a capacidade de ENXERGAR e CONHECER as próprias emoções, sem julgá-las. Não há que se ter um modelo ideal de como sentir e do que sentir. Este é um instrumento de auto-conhecimento, e quem quer se conhecer não pode ter a priori uma lista de coisas que não quer reconhecer em si.”


8. A doula e o ativismo

Entrar no movimento mundial de humanização do nascimento e parto é quase inevitável às doulas. Conhecer o feminismo, o empoderamento feminino, as questões de gênero e os fundamentos da sociedade patriarcal. Não há como doular, sem apresentar à gestante a realidade obstétrica nacional na qual ela está inserida e contra qual terá que lutar.

É impossível defender a humanização do parto e nascimento sendo machista! O patriarcado tem que ficar de fora e muitas vezes isso dá um choque dentro da gente, que cresceu em educação machista, em sociedade patriarcal. Muda-se completamente a forma de enxergar a maternagem, a posição de esposa (se for) e profissional depois de entrar pro movimento e compreender que ele é, essencialmente, feminista.

Existe muita questão envolvendo o gênero feminino quando o assunto é gravidez e parto e a doula tem que está a par disto pra servir de esteio à gestante que trará estas demandas. Muitas vezes, as grávidas acham que é normal, é natural, é ‘da mulher’ ou é ‘do homem’, pensar desta ou daquela forma, e a doula pode apresentar um mundo novo... um mundo de ideal de igualdade, mas bem duro de se fazer leitura e crítica.

Ouve-se coisas como 'vc vai deixar sua mulher estragar o playgroud num parto normal?' ou ainda sobre os seios pertencerem ao marido e não ao bebê. Impossível não provocar grandes revoluções na gestante quando ela se dá conta do machismo disfarçado e de que seu corpo sempre foi coisificado. Existe, inclusive, um prestígio gigantesco dado pelas gestantes aos médicos, principalmente os que são há anos ‘da família’, mesmo quando eles reconhecidamente estão decidindo em desfavor da mulher e do bebê. Mas é isso mesmo que se observa, ainda que seja a mulher que pari, se houver um homem no cenário, foi ele que ‘fez o parto’.


Conclusão

A figura da doula moderna, em suma, navega por mares de poesia e de profissionalismo. É o preenchimento da lacuna de solidão a que todas as mulheres estão submetidas na sociedade atual. É a mão amiga no maior e mais feminino ritual de vida que existe. Orienta, instrui, mobiliza o pensamento crítico, o auto-conhecimento. E acalenta, conforta... corre invisível pelas margens do trabalho de parto, de forma a garantir o bem estar da protagonista mor.

É a que esclarece e que mostra a luz... àqueles que querem enxergá-la. É o bálsamo em chagas do patriarcado.


Referências:
[1] Intervenção proferida durante a Conferência "Birth is a Human Rights Issue", da Midwifery Today, em Setembro/Outubro de 2010, em Estrasburgo, subordinada ao tema "Natural Approaches in Birth and Parenting - From Physiology to Practice"

[2] Mirella Faur: http://www.teiadethea.org/?q=node/92

[3] Adriana Tanese Nogueira, curso doula-parto ONG Amigas do Parto

[4] Adriana Tanese Nogueira: Editora Biblioteca 24 horas

[5] Curso Doula-parto ONG Amigas do Parto (o título do post encabeça um capítulo deste livro)



Post de 2011 atualizado em 2013.


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