25 de setembro de 2013

A amamentação e as chagas do patriarcado



por Cariny Cielo


Aí você nasce, vindo de um meio que é conforto puro. Conforto térmico, conforto gravitacional, conforto auditivo, conforto visual, um toque gostoso, o sacolejo ritmado, a explosão de sons que tranquilizam, a paz profunda...

Alimentava-se quase que ininterruptamente, sem nenhuma ressalva. Assim que queria, como bem lhe aprouvesse, dava goladas generosas de líquido amniótico. Não havia dia, nem noite. Era o tempo sem hora.

Passada a tensão que todo o ritual traz, seja ele de partida ou de chegada, você conhece, enfim, sua mãe.

Mas agora o tempo é outro! É o tempo dos relógios, é o tempo das medidas, dos padrões. É o tempo do engessamento, do reto, do limpo, do direito... é o tempo da razão. E assim, surgem as regras, a rotina imposta. Surge a distancia, o silêncio, a inércia.

Você é, então, deixado em um berço, sem aquele som, sem movimento, sem alimento. E você busca, em completo desespero, aquele conforto que vivenciou e que te trazia tanta paz. Você estava no paraíso e agora... Bem vindo! Você chegou na sociedade patriarcal!

A invenção do patriarcado foi a negação do ventre materno, do seu dom de dar a vida e de tudo mais relacionado ao feminino: a emoção, o instinto, o calor, o conforto, o contato, a empatia, o colo, o doar-se. Mulheres e homens sufocados, buscando na razão, o que só a emoção explica... e é por isso que você sofre.

Sua mãe provavelmente não tem na própria mãe um esteio para apoiar-se nesta jornada. Ela também não amamentou. E não há mais mulheres ao redor, não há tias, primas, irmãs... as famílias são agora núcleos fechados, valoriza-se o indivíduo e não o coletivo. Não existe comunidade pois estão todos distantes, fechados em suas próprias paredes.

Você não sabe falar, é um bebê fisiologicamente prematuro e busca desesperadamente por aquele ambiente de paz que tem em seus registros de memória mais primitivos. E aí você chora. Chora por ser a única forma que conhece de se fazer visto e ouvido. Você carrega os milhões de anos que o tornaram um ser humano e sabe que chorar é a chance de ser acalentado, de ser livrado do perigo... são registros muito primitivos, do instinto, da chama essencial do que que nos faz humanos, da fagulha divina.

Ela sabe que você é um grande presente, mas, distante que está de seus instintos femininos por tê-los sufocados a vida toda para encaixar-se nos ideais impostos, acha que é nos livros que aprenderá como lhe acalentar. Ingênua ignorância. Você está aqui para lembrá-la de que ela é instinto, ela é mamífera, ela é bicho, ela é mais um ser vivo neste vasto planeta... com toda a fisiologia à serviço da vida. E é aí que ela racha. Racha porque não sabe mais ser natural. Realizamos grandiosos feitos com nosso maravilhoso neocórtex, mas o nosso primitivo ainda grita dentro de nós... grita por respeito, por validação, por liberdade. Muitas vezes é só no momento do conceber, gestar, parir e amamentar, que a mulher se dá conta, enfim, de que é um ser mamífero, dotado de razão, de intelecto caminhando lado a lado com a emoção e o instinto.

Sua mãe busca os anseios femininos, mas nem sempre os encontra. Sua mãe está confusa, perdida, ama com o corpo e alma, mas não consegue se conectar com a alma feminina, essencial para as tarefas de cuidado e empatia.

Seu pai também passou anos recebendo mensagens de que emoções são sinais de fraqueza e, por isso, ele quer ser forte, ele quer compreender com a cabeça, não com o coração. O coração foi calado, endurecido e posto sem segundo plano. Talvez por isto mesmo, por ser o macho, o homem, o pai, ele tenha ainda mais dificuldade em exercer a empatia com você... que chora, clamando por um colo.

Qualquer livro que diga algo diferente de 'ouça seu filho'; ouça o que este bebê quer dizer'; 'esqueça todas as regras e seja pai e mãe desta criança que é única no mundo todo' é inimigo do aleitamento, é inimigo do feminino, é inimigo do natural, é inimigo da vida.

Eu sei que é impossível para você aguardar por três longas horas para saciar sua fome de alimento e de vida. Eu sei que é insuportável mamar e ser privado do seio pela arbítrio do relógio, de um tempo que até poucos dias você sequer conhecia. Nem eu consigo ficar 3 horas sem comer ou beber algo, imagino como deve ser desesperador para você que acabou de chegar por aqui e está em período de simbiose profunda com a sua mãe. Você acha que é o que ela é, sequer se compreende indivíduo. Eu entendo, entendo porque lhe é impossível aceitar a separação dos corpos. Entendo seu grito. Separar te soa como morrer.

Eu sei que você precisa mamar o leite anterior, que te mata a sede, mamar o leite posterior, que te mata a fome e, mais ainda, eu sei que você precisa mamar para sentir que está vivo, eu sei que você precisa daquela bolha de amor, daquela energia pulsante te dando boas vindas. Sei que o leite posterior é produzido quando a amamentação está disponível em sua plenitude, sem regras, sem rigidez.

Mas regra e rigidez são ferramentas do patriarcado. Esse modo de vida contrário a própria vida. E é por isso que ela não consegue te ouvir. Ela é amor, mas é um amor sem pernas e braços para ir ao teu encontro e te pegar no colo.

Eu sei como é a solidão fria, silenciosa e inerte do berço e que isto não se parece em nada com aquele estado de deleite em que vivias. É preciso um ouvido carinhoso e alguém que cuide de sua mãe para que ela possa, enfim, te ouvir e, se entregando a ti, te compreender. Ela foi educada para ser invencível, para ser perfeita e tua insistente exigência soa para ela como uma espoliação. 

Seu choro motiva nela culpa e derrota... mas ninguém tem culpa. Nem tu que está sendo apenas o que é, nem ela que está fazendo aquilo pelo qual foi talhada para fazer. 

Quanto à derrota, bom... todos perdem... perdem a vivência única de bem receber um recém chegado, cheio de mistérios e encantos. Perdem de viver com leveza o bom e o ruim deste grande encontro. Perdem a delícia de desfrutar e se conectar com aquela energia que é pura inocência. E perde você que, não se alimentando bem, perde peso, perde sossego e pode perder o seio, assim que um médico pouco comprometido lhe receitar leite artificial...

Como curar esta chaga? É justamente no momento de cisma da mulher - quando ela se vê mãe - que esta ferida mais dói. Surge a dor da saudade que se sente na nossa parcela mulher mais verdadeira e livre, aquela que levamos anos para sufocar. E a cura? A cura, nos dizeres de Mirela Faur, virá com encontros de homens e mulheres em círculos e vivências comunitárias, para despertar e alinhar mentes, corações e espíritos em ações que visem a cura e a transmutação das feridas da psique, infligidas pelo patriarcado.

Apaziguar a si mesmo, harmonizar seus relacionamentos, vencer o separatismo, reconhecer e honrar a interdependência de todos os seres, evitar qualquer forma de violência, dominação, competição ou discriminação são desafios do ser humano contemporâneo, no nível pessoal, coletivo e global. Incentivando a parceria e a integração entre os gêneros.

Mas hoje, agora, já, eu digo que é preciso mais contato, mais toque. É preciso mais devoção, é preciso mais entrega despretensiosa. É preciso mais linguagem de mãe. É preciso mais ajuda sincera e sem julgamentos. É preciso um amor despido, um amor de carne, osso e alma. É preciso um 'colocar-se do lugar de'.

É preciso mais colo sem tempo e um seio sem relógios...

Eu sei o quanto você deseja calor, embalo e colo, mas você chegou por aqui em tempos difíceis...


Imagem: arquivo pessoal

2 comentários:

  1. Letícia de Andrade Venicio27 de setembro de 2013 às 07:34

    Oi Cariny querida, adorei esse texto! Vem de encontro com tudo que conversamos e que tenho pensado nesses últimos dias. Parabéns, o blog está muito bom!

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  2. Obrigada! Que bom que gostou...
    Sim, as coisas não estão fáceis pros recém chegados!

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